As canções a seguir, que tentei reinventar com alguma criatividade, apresentam Morungen no que penso ser os picos de sua poesia. É um trovador que escreve como se fosse mudo. O que detém o máximo da sua preocupação é o olhar; cada verso evoca um cenário óptico. O que lhe importa: ângulos, pontos cegos, incidência do sol, vergência do espelho. Isso porque a palavra lhe é uma inutilidade. A dama não ouve. Assim como o sol não tem ouvidos e dissipa em calor o ar sonante que venta contra si, ela derrete com risos as palavras do cantador: tudo é vaidade, sim, porque o sol nasce, se põe, e volta para o lugar de onde nasceu. Inutilidade, porém, não é a única coisa que entenebrece o canto e a fala: contra o seu amor se levanta a crueldade, a vigília do guarda, o mundo dos acordados que se arvora com a chegada do sol. Tudo o avexa à mudez: o jogo do amor, a beleza de quem se ama, a fúria do mundo; todavia: mantém o canto, não se sabe se por heroísmo ou falta de opção.
IV - In sô hôher swebender wunne
Nesta alta e undívaga leveza
um coração sem boia não nadou.
Eu rodo como a águia ou a presa
e giro em torno de quem é amor,
porque ela um recado me mandou -
um que me passou pela alma,
mas só no coração se aquietou.
O que contemplo estonteado
se espelha em face da minha alegria.
Vento e terra e campina e descampado
receberão o despontar do dia,
eu vou com esperança alçar a vista,
certo de aferir no horizonte,
lá no alto, a coragem renascida.
Bendito quem trouxe o recado
que doce às minhas orelhas parece;
bendito seja o que provo de amargo
e no meu âmago doce submerge.
Daí uma alegria reemerge
e flete e engendra a garoa
e de amor os meus olhos enobrece.
Bendita seja a doce hora
e bendito seja o tempo e o dia
em que a palavra sai de sua boca,
acha no meu coração moradia;
e eu, estremecido de alegria,
já não sei que dizer de amor
e pr'aquela não tenho alegoria.
VII - Ez ist site der nahtegal
É maneira do rouxinol,
quando a felicidade esvanece, calar.
Eu contudo me espelho no pardal
que na morte ou no amor não deixa de cantar.
E, porque pedem um som,
vou cantar uma nova canção:
"Ai-ai...
e eu que tanto implorei
e por socorro roguei,
lá onde a graça não cai."
Se calo e cantar não vou,
eles dizem que o canto é o que me convém.
Se canto e calar não dou,
eles zombam de mim e me xingam também.
Como viver entre estes
que mascaram o mal com dizeres?
Ai-ai...
e eles que conseguiram
que do canto eu desistisse;
vou cantar de novo, e mais:
Ai tempo que não retorna!
Ai dias claros, tempo ameno, hora tenra!
Quanto múnus não vos torna
nas minhas mãos! E agora habita-me a tormenta:
eu cantei, ela me ouve,
mas do canto o coração não soube.
Ai-ai...
esses meus anos perdidos
e eu: tão arrependido!
Choro, e não paro jamais.
É o riso, é rosto brando,
urbanidade, e eis-me um tolo longo tempo.
É isso, e eu não cirando.
Se vangloriem à vontade, percam tempo.
Viver sem sossego - eu sei -,
mas com mulheres nunca deitei.
Ai-ai...
eu vejo, mudo de cor,
e dela falo o melhor;
ela olha - ri. Se vai.
Todos amam um enigma,
mas é enigma ruim, se é um pobre coitado.
Todo mundo desanima
e manda se catar quem ama sem pecado.
E disso eu sei muito bem,
servindo sem ganhar um vintém.
Ai-ai...
paguei, e não recebi.
Alegria nunca vi
e eu pago ainda mais.
Se me desse a bem-querer,
alegria maior no mundo não teria.
Se a Deus fosse recorrer,
sem a graça que dá eu jamais morreria.
Por isso eu não vou parar
antes que eu morra de graça cantar.
E se ela...
e se mudasse de ideia?
- Se mudasse de ideia?
Eu parava de chorar!
XIa - Ich bin iemer ander
Sou sempre outro, e nunca sou primeiro
em amor grande, de que não vou longe.
Na torre o guarda, no portal o olheiro,
não ouçam e não vejam, pois eu canto
para ela toda noite
e abro meus sofreres com cantar.
S’eu pudesse co canto arrebatar
a que amo, meu som seria outro.
Ela não deveria rir a todos
de peito aberto, como ri pra mim,
e não com tanto amor girar seus olhos.
Que querem os que olham para ti,
em quem vivendo me vejo
e tens minha alegria entre as mãos?
Não quero nunca envelhecer, não,
enquanto a vê, meu coração viceja.
Muitos chamaram amor de alegria;
não sei como a que amo chamarei.
Amor, me cultiva a sabedoria,
o mau eu nego, o que é bom amarei.
Se o amor me vem, não tarda
vir a coragem - graça para tal.
Mas - não sei onde - toca um triste mal
em mim, e o mundo perde sua graça.
XII - Ist ir liep mîn leit
Se ela gosta de me ver sofrendo,
que gosto me terá em qualquer outra coisa?
Ela não anda como eu, gemendo,
e, se reclamo a ela, então me diz: "Que coisa!".
Mas nos meus olhos seu desenho bem repousa
como antes, quando gostava
de conversar, e eu a olhava.
Ai! mas agora ela é outra...
Ela adora um lindo passarozinho
que lhe fica a cantar e falar um pouquinho.
Se me desse ser como este um dia,
juro que nem um pio a outro eu cantaria.
Mais que o rouxinol, ia em reclames no ninho:
"Ai formosa minha senhor!
por todo teu agora eu sou;
eu canto de amor, vem comigo!"
Pela virtude e pelo seu valor
ela resta sem culpa em infeminidade,
mas crueldade... Ela nega amor
e graça a quem a serve, e deixa que se estrague.
É bom que tenha o meu coração em seu laço
e não tenha um só cavaleiro
que avance um fio de cabelo
com ela, se um dia eu infarte.
†Felicidade deus nos planejava
junto a bela mulher, que ele bem tem feito.
Mas isso todo cristão já cuidava.
Dos seus lábios recolho o roxo do meu peito.†
De sua graça vem aos homens felicidade
e terá honra para sempre.
E eu graça e amor mantenho
em quem todo valor desvale.
XIV - Mîn herze, ir schoene und diu minne
Meu coração, beleza dela e amor,
todos tramam
e querem ver felicidade morta.
E por que?...
Vai, amor, vai e voa,
uma parte da minha dor
doa a quem amo.
Uma só, e seus pensamentos ficarão vermelhos.
Eu quero mal a ela?
- De modo algum.
Talvez esteja com raiva?
Porque sem palavras me jogou no inferno?
XVI - Wê, wie lange sol ich ringen
Raios, por quanto mais tempo
vou procurar mulher com que nunca falei?
Onde vou achar alento?
Olhem, me espanto, pois até então não sei
de algum que tenha errado assim como fiz eu
ou com entranha tanta tenha amado
sem nunca o confessar, sem deixar de ser seu.
Eu sei bem que ela ri
quando a percebo e paro e não sei mais quem sou.
Fico fraco aqui e ali,
depois seu rosto torna e toma o que sobrou.
Deus sabe bem que eu falo e ela não me ouve
e que só com cantar se interessa,
por que canto legal o que melhor a louve.
Alto lá! que asneiras digo?
Será que reclamar é só o que me resta?
Então ser mudo eu prefiro:
não consegue dizer que coisa lhe molesta
e, quando quer falar, as mãos tem de mover.
Também eu com a mão exponho o peito
e me ajoelho e baixo até seus pés saber.
XVIII - Diu vil guote
Amiga,
estarrece!
é grande a graça
que moves ou te move.
Maldito o guarda
que à face do mundo a luz da tua
remove, que não te veja todo o tempo
um pobre que à noite aguarda o sol que esclarece.
Espero
a longa noite
contra a manhã enrarecer.
Serei o primeiro a ver
meu sol
a dia irradiar contra os meus olhos
até não chorarem
mais, se a nuvem negra o recolhe.
Amiga,
quem te guarda?
-- Eu o bano!
Deus te criou
claro espelho
do mundo, e para todos felicidade.
E ninguém enterra ourivesaria
ou cobre a prata com pano.
Vergonha
a quem põe guarda
a velar sobre quem guarda a virtude.
A mais pura das mulheres
é inconstante, se anda com guardas.
Deixa que olhem,
e ninguém mexa com ninguém.
Todo ulcerado tem sede de cachaça.
Ascholoie
é o nome dela.
De Tróia
Páris, quem a quer amar.
Se entre as belas
mais belas deste tempo ele tivesse de escolher,
a maçã seria dela -
isso se ninguém se mete a comer.
XX - Vrowe, mîne swaere sich
Dama, meu suplício vê
e vê antes que eu entregue a vida.
Ela tem algo a dizer,
mas não quero escutar, amiga minha!
Tu dizes sempre nananinanão
e não e não! e não-não;
o que me parte o coração.
Mas não sabes dizer assim:
sim sim sim sim sim sim sim?
Que dizes, que não seja o fim?
XXX - Owê, - sol aber mir iemer mê
Ai! -
Virá ainda um dia,
claro em meio à noite,
mais claro que a neve,
a mim seu justo corpo?
Meus olhos se enganaram:
pensei fosse lua
com seu claro rosto -
quando veio o dia.
"Ai! -
Virá ainda um dia
que à lua se entregue?
Em que a noite passe
e ninguém proteste:
"Ah, mas já é de dia?"
- como ele disse
a mim neste albergue -
quando veio o dia?"
Ai! -
Um sem-número de beijos
me deu, e eu dormia.
Um vale de lágrimas
deixou que caíssem.
Mas eu bem confiava
que ela seu choro
mudasse em carícia
quando veio o dia.
"Ai! -
ele perdeu de vista,
me olhando, a estrada.
Me desembrulhou
para ver meus braços
sem ter nada por cima;
para o meu espanto
ainda me olhava
quando veio o dia."
XXXII - Mir ist geschehen als eine kindelîne
Sou então um menininho
que sua frágil face vê no espelho
e que com sua mão sonda a si mesmo
até ficar o espelho destruído.
Inverte-se o seu sorriso
e eu, o menino, sempre desejo
felicidade, mas feliz sou triste
quando a minha amada eu vejo.
Amor, que ao mundo aumenta
felicidade, e em sonho me urge
amada minha quando eu deito e durmo,
minh'alma dum sorrir novo ornamenta.
Mais que outras nobre e serena,
teu rosto vi, e lúcida virtude:
só a pingar um pouco a gota lenta
dos tontos lábios teus de roxo justo.
Um terror então me toma
que seus lábios de roxo a branco fossem
e então começo com novo desgosto
que sobre o meu coração desmorona -
com olhos olho a dama:
sou o menino, sei da vida pouco,
e devo em águas a forma da sombra
que me espelha visar até ser morto.
Mulher de senso e virtudes
como as dela altas sob céu não há -
ela, em presença de quem sou intruso,
ao lado de quem vou sempre restar.
Que pena; isto terminar
queria em seu amor, feliz em tudo,
mas o fim pelo começo já mudo;
adeus, sorrir, saudades de esperar.